O percurso do conceito de raça no campo de relações raciais no Brasil
Por: Arine Rodrigues Alves
Ao aprofundar-se nos textos da unidade é possível ter uma noção de como o Brasil recebeu de maneira atrasada as teorias racistas citadas na unidade anterior. Este fato foi primordial para que o país se desenvolvesse um pouco menos racista do que os demais, porém torna-se evidente que mesmo sendo uma nação multicultural, que teve sua origem em uma grande mistura de raças, não é isenta de preconceitos e ideias pré-construídas.
A abolição da escravatura em 1888, assinada pela Princesa Isabel, também marcou a história pelos problemas e debates que tal medida causou no futuro da nação. Naquela época, o Brasil era composto, em sua maioria, por negros, mestiços, escravizados e muitos libertos. A partir da abolição, os escravos passaram a ser cidadãos livres, dotados de direitos e deveres, tornando-se parte reconhecida do povo brasileiro. Surge aí um problema, segundo Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça/GPP – GR (2010 p70): Como constituir uma nação habitada majoritariamente por ex-escravizados/as negros/as e mestiços/as, agora elevados/as, ao menos juridicamente, à categoria de cidadãos e cidadãs?
As teorias racistas vindas da Europa ajudaram a complicar o olhar da sociedade e dos outros países em relação ao Brasil e principalmente quanto ao seu futuro. Condenavam, pois era uma nação cuja sua formação populacional se deu através da mistura de raças. Porém como estas teorias, chegaram ao Brasil de forma muito atrasada:
Resumidamente, o que essas teorias apontavam era uma espécie de futuro degenerado para a nação, uma vez que a população brasileira era constituída majoritariamente por indivíduos descendentes das raças ditas inferiores (negros/as, indígenas e mestiços/as). Nessa lógica, éramos um país cujo futuro estaria comprometido, fadado ao fracasso devido à composição racial de nossa população. Em suma, o que estava em jogo no debate travado em fins do século era justamente a definição da identidade nacional, ou seja, aquilo que constituía (e constitui) o povo e a nação brasileira. (Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça/GPP – GR, 2010, p.72)
Os conceitos de raça, mestiçagem (descendentes da mistura de duas ou mais etnias ou raças) e miscigenação que segundo site Brasil escola, pode ser definido como o processo resultante da mistura a partir de casamentos ou coabitação de um homem e uma mulher de etnias diferentes, passaram a ocupar lugar de destaque nas discussões de intelectuais brasileiros interessados em solucionar o problema de se pensar a viabilidade da população brasileira, vista dentro do contexto racista do século XIX. A vinda de imigrantes europeus, iniciada neste mesmo contexto, acabou sendo de grande utilidade para os racistas, pois estes não os viam apenas como mão de obra necessária ao país, mas tinham interesse por sua ascendência racial. Fato este que comprova uma tentativa de embranquecimento do país, um projeto de extinguir a população negra ao longo do tempo através da mistura de brancos.
Os libertos, não receberam qualquer tipo de reparação pela sua antiga condição, nem ao menos auxílio de inserção na sociedade, trabalho assalariado e entre a sua mão de obra e a do imigrante, este era sempre preterido. Com o tempo, começou a ser utilizado o conceito de democracia racial pelo qual os outros países passaram a crer que o Brasil escapou do racismo e da discriminação, era um país democrático e sem a presença do racismo. Assim:
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A primeira semana de Arte Moderna (11 a 18 de fevereiro de 1922) tinha como proposta olhar os elementos nacionais de origem popular. Assim, os elementos culturais da população negra passaram a se vistos como símbolos nacionais. Segundo Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça/GPP – GR (2010, p.86) a feijoada, a capoeira e o samba, antes vistos como manifestações culturais inferiores devido a sua origem negro-mestiça, passam a representar o que haveria de mais brasileiro.
Olhando por esta perspectiva, parece que o país teria atingido uma situação de igualdade, de exaltação das diversidades e da cultura, uma verdadeira democracia racial. Porém, os negros ainda eram preteridos nas questões trabalhistas, fato este que resultou em uma grande massa de pobres e uma considerável desigualdade social.
Essa visão de democracia racial no Brasil levou a algumas indagações por parte de outras nações. Estas se perguntavam por que os negros e mestiços afirmam sofrer discriminação e preconceito? Será que realmente o Brasil possui preconceito racial? Estas dúvidas deram lugar a investigações sociológicas, que assim como a Antropologia na Europa, passou a utilizar o tema como objeto de estudo, e esta procurou entender as relações entre negros e brancos nos anos de 1940 e 1960. É interessante transcrever um trecho que relata a pesquisa do sociólogo norte-americano Donald Pierson (1900-1995), contada no livro Brancos e Pretos na Bahia (PIERSON, 1942):
A pesquisa que deu origem ao livro foi realizada na capital baiana entre1935 e 1937. Nesse período, o pesquisador conviveu e analisou as atitudes raciais dos/as soteropolitanos/as por meio de técnicas como observação participante, entrevistas e leitura de obras brasileiras que tratavam das relações entre negros/as e brancos/as. A conclusão do sociólogo, que se mostrava bastante influenciado pela leitura de Casa Grande & Senzala, era a de que o Brasil seria uma “sociedade multirracial de classes”, ou seja, uma sociedade de classes na qual se podia verificar a presença de indivíduos em todos os níveis da pirâmide social.As classes mais elevadas tendiam a ser mais claras do que as baixas, o contato entre elas era amistoso e, na maioria das vezes, ausente de conflitos. Pierson também afirmava que o apego à noção de raça era pequeno e seria errôneo falar em “preconceito de raça”, o qual era extremamente difícil de ser visto e, quando ocorria, se dava de maneira isolada a partir de crenças e atitudes individuais estranhas às tradições autóctones. Por outro lado, era evidente ao autor a existência de “preconceito de classe” nos contatos entre indivíduos de classes distintas, de modo que uniões matrimoniais entre pobres e ricos/as também não eram estimuladas. Para o autor, verificava-se sociologicamente a existência de uma democracia racial no país, uma vez que o que muitos/as ativistas negros/as classificavam como “preconceito racial” era na verdade “preconceito de classe”. (Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça/GPP – GR, 2010, p.89)
Na realidade, o preconceito no Brasil é exercido de forma velada, atrelado a crenças, atitudes isoladas que na prática, muitas vezes não são vistos como atos de preconceito. Em outras nações esta discriminação sempre teve uma manifestação mais explícita, por isso o Brasil, segundo a visão delas, era visto como um país de democracia racial.
Após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil voltou a ser o centro da esperança em termos de democracia racial, visto que as outras nações enxergavam uma suposta relação de tolerância em terras brasileiras. Surgiram no País, uma série de pesquisas, que ficaram conhecidas como “Ciclo de Estudos UNESCO” (1953-1956), com o objetivo de estudar essa experiência brasileira e exportá-la para outras nações que possuíam problemas raciais. Das pesquisas realizadas, três merecem destaque:
- O Negro no Rio de Janeiro - Luiz Aguiar de Costa Pinto: seu objetivo era mostrar a existência ou não do problema racial no Rio de Janeiro dos anos de 1950. Na visão do autor, a questão racial é o fruto dos processos da industrialização, modernização e das classes sociais existentes. O Rio de Janeiro era dividido entre proletariado e elite negra, onde enquanto respectivamente um era o povo que compartilhava manifestações religiosas e culturais como a macumba e escolas de samba, a outra eram as elites novas que buscavam a ascensão coletiva, tinham a consciência do ser negro e sua bagagem cultural e religiosa.
- Preconceito de Marca - Oracy Nogueira: Em seu estudo, demonstra que o preconceito existente em relação aos negros no interior é reflexo das relações sociais e pensamentos herdados do período da escravidão. Como a maioria da população negra era constituída por pobres, negro virou sinônimo de classe baixa, fato que também gerava o preconceito de classe.
- Relações Raciais entre Brancos e Negros em São Paulo - Florestan Fernandes e Roger Bastide: O objetivo era responder qual era a função do preconceito na sociedade brasileira antes e depois da abolição. Em sua pesquisa chegou à conclusão que o preconceito é um grande esforço das oligarquias que visam manter a soberania e os privilégios de algumas classes sociais, nas quais as posições eram herdadas e seu principal pré-requisito era o pertencimento racial.
É importante salientar uma diferença entre as pesquisas de Florestan Fernandes e de outros autores:
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Internamente, era comum no Brasil, e nos dias atuais, encontrar pessoas que conheciam pessoas racistas ou que presenciaram situações de racismo, porém ninguém admitia ter exercido algum ato de racismo. Existia o que Florestan chamava de “preconceito de ter preconceito”. O racismo ganhou a definição, segundo Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça/GPP – GR (2010, p100) de um conjunto de ações, ideias, doutrinas e pensamentos que estabelece, justifica e legitima a dominação de um grupo racial sobre outro, pautado numa suposta superioridade do grupo dominador em relação aos dominados.
Sendo assim, o Ciclo de estudos da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura) Acabou se tornando uma prova contra as pretensões do Brasil de se tornar uma referência em assuntos raciais, um exemplo de tolerância, visto que o preconceito foi colocado como uma realidade presente no país.
Quanto ao conceito de raça, Moutinho (2004) afirma que, em todas essas obras, já não aparecem mais concepções biologizadas de raça tão comuns em autores/as anteriores aos anos 1930. Neste contexto, raça é vista de um ângulo sociológico, ela é vista como algo a ser construído de fundo social, histórico e político e que possui relação direta com o modo com que as pessoas se relacionam e organizam a sociedade.
Os anos de 1980 e 1990 foram o momento de grande interesse de sociólogos e antropólogos pela maneira de classificação da sociedade brasileira. Muitos foram os assuntos discutidos, foram muitas interpretações, mas o que é preciso enfatizar é que a história das relações raciais e sociais no Brasil foi construída ao longo de vários períodos históricos e é muito complexa. A raça deve ser entendida apenas como uma categoria política, social e histórica que está presente no contexto de formação do Brasil.
Sendo assim, como já foi citado em outros módulos, apesar desse clima de igualdade racial, conquistado por meio desse multiculturalismo, o Brasil não esconde os estereótipos com os quais os negros e negras foram “rotulados” ao longo da história e ainda nos dias de hoje. Existe uma tentativa de reverter esse atraso, de buscar reparar a antiga condição de escravo dos negros através de políticas públicas que refletem o papel do gestor, como:
- Políticas universalistas: busca o acesso igualitário de todo cidadão aos direitos. Porém, sem foco, elas acabam apenas melhorando os índices de acesso, contribuindo para a perpetuação da desigualdade.
- Políticas afirmativas: têm como objetivo diminuir a desigualdade, historicamente construída, e buscar prevenir que novas desigualdades se estabeleçam, em qualquer seguimento.
- Políticas focais: são políticas voltadas para um foco, no contexto, para gênero e raça. Não se limita apenas ao acesso aos direitos universais, busca um olhar sobre a necessidade de acabar com a desigualdade existente, para que verdadeiramente os direitos universais de igualdade sejam vividos de forma efetiva por todo cidadão.
Porém, o preconceito ainda existe, segundo informações obtidas no site http://www.vitoria.es.gov.br/seme.php?pagina=combateaoracismo, embora o preconceito racial esteja na estrutura da sociedade brasileira, ao longo do tempo, ele foi e ainda está encoberto por um falso discurso de igualdade étnico-racial. Ainda, segundo o mesmo site, da luta do Movimento Negro nasceu a lei que tornou obrigatório, em todas as escolas oficiais e particulares dos níveis fundamental e médio do país, o ensino de história e cultura afro-brasileira no âmbito de todo o currículo escolar, Lei Federal 10.639/2003. Porém ainda não foi suficiente para superar a prática de ações racistas, por isso foi criada um conjunto de ações e um setor responsável, a Comissão de Estudos Afro-Brasileiro (Ceafro), composta por professores e pedagogos com experiência nos temas abordados e é referência em combate a discriminação étnica nas instituições educacionais da rede pública nacional.
Comissões como a Ceafro auxiliam as instituições na luta contra o preconceito, mas cabe a escola dar continuidade diariamente ao trabalho, desenvolvendo ações para minimizar, visando erradicar a prática de discriminação.
Na educação existem os programas de cotas para negros, as bolsas de estudos e financiamentos para a população de baixa renda ingressar no ensino superior. Porém, o sistema de cotas para negros não é uma medida somente positiva, pois pode ser analisada por muitos ângulos. Ao mesmo tempo em que é uma forma de cidadãos negros que não tiveram oportunidade de estudar e uma condição econômica que possibilitassem avançar nos estudos, alcancem o Ensino Superior, é uma medida de separação racial, ela deixa implícito um estereótipo de inferioridade. Isso é uma forma de disseminar o preconceito, ainda que de forma velada.
É preciso desenvolver políticas públicas e projetos educacionais que verdadeiramente coloquem os seres humanos em situação de igualdade, com as mesmas oportunidades, desenvolver um respeito mútuo e uma valorização a cultura do outro. É na escola que as crianças têm um contato maior e direto com diferentes culturas, por isso, é ela o melhor lugar para exaltar a importância do multiculturalismo brasileiro para construção de uma sociedade que exerça de forma efetiva uma democracia racial.
Referências Bibliográficas
COSTA, Cristina. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna, 2005. p.
Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça/GPP – GR: módulo III/ Orgs. Maria Luiza Heiborn, Leila Araújo, Andreia Barreto. Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: Secretaria de Políticas para Mulheres, 2010.238p.
Acesso em: 05 nov.2011
Acesso em: 06 nov.2011
Acesso em: 06 nov.2011
Acesso em: 05 nov.2011
MOUTINHO, L. Razão, “cor” e desejo: uma análise sobre relacionamentos afetivo-sexuais “inter-raciais” no Brasil e na áfrica do Sul. São Paulo: UNESP, 2004.
Imagens disponíveis em:Semana da Arte Moderna
Desigualdade racial
Notícias
Documentario-cafe-com-leite-agua-e.html
Mito das três raças
Acesso em: 25 nov. 2011
Por: Arine Rodrigues Alves
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